Senhorita Microfonia

   Eu me arrependo cada segundo de ter aceitado cantar aquela música. As coisas sempre saem da pior maneira quando você está do lado de fora do quarto, sem tapete, sem travesseiro para rir, quando você cospe notas absurdas. Seria pior se rissem, mas o silêncio que eu via na cara das pessoas que nem pensavam na minha aflição era o pior. Acho que não davam a mínima, para a menina tola que não fazia diferença na noite de terça-feira delas. 
   Parecia um pesadelo, dos mais agoniantes, quando você faz coisas que estragariam sua vida de uma vez, e você certamente não teria coragem de fazer se fosse de verdade. Não aguentava não me ouvir, piorava quando ouvia, porque eu não conseguia fazer certo, eu não conseguia fazer certo.
   Os tímidos então, são um bando de criaturas enjoadas e orgulhosas? Era tudo de verdade, e eu até pensei que ia rir dessas coisas depois de um tempo, mas tenho certeza que não vou. Faço caras de sofrimento, e dou gritinhos estéricos e repentinos quando me lembro. É muito fácil falar quando eu não estou mais lá. Na verdade, continua difícil, mas eu continuo cantando todos os dias, pra o canto da parede e para o armário, que guarda minhas notas graves e estranhas com muito cuidado.
   Eu tenho medo de microfones, que microfoniam quando eu os viro ao contrário, quando sinto muito mais vontade de entortar meu pescoço e quebrar meus ossos, mas não posso.
   Acordei assustada, lembrando a Microfonia me gritando "SAIA, ESTÚPIDA". Eu deveria ter corrido, antes mesmo de começar. Teria menos vergonha de ter tido vergonha, do que a vergonha que está pinicando nas minhas costelas, por ter criado uma coragem feia e deselegante, uma coragem ainda um pouco tímida. Não era a hora.

   Venha só você aqui do meu lado, dividir comigo meu tapete, meu pequeno sonho, de cantar sozinha pra mim mesma, e cantar só um pouquinho pra você, para manter o cuidado que tomaram minhas paredes e meu armário, de guardar bem guardado, meu sorriso desafinado, não tenho tanta vergonha assim de você.

Posted by Menina Radiguet Drubi | às 7/27/2011 07:22:00 PM | 3 comentários

Sete anos, sete dias

 O silêncio era quase como um sonho durante os sete dias em que ela esteve lá. As perguntas eram mais frequentes que o tanto de vezes que ela conseguia respirar entre as palavras. Bastava ouvir rastros da sua voz chegando pelas escadas, que certamente, a paz de todos dentro de casa, mais a do resto da vizinhança, e da vizinhança vizinha, saía pela porta dos fundos. Correndo. 
 Ela abria a porta como quem derruba a entrada do terreno inimigo, então ouvia-se um coro de suspiros daqueles que eram escravos de sua voz, tão aguda, irritante e autoritária. Sete anos. Sete anos haviam sido o suficiente para que aquele monstro, abominável, se tornasse tão abominável, para qualquer um, e nem um pouco para ele mesmo.
 Morangos à mesa: dois terços, incluindo os maiores e mais vermelhos, iam sem muita cerimônia, se atirar como pedras na boca com menos dentes que a quantidade de morangos, aquela boca que ela fazia questão de manter aberta, ao mesmo tempo que entrava comida e saiam palavras.
 Suas mãos, sempre mais sujas que os pés, com manchas das frutas vermelhas que ela tinha roubado do pacote que alguém acabara de trazer do mercado, unhas curtas, redondas, roídas, sujas e com restos de esmaltes toscos. Com as mesmas mãos, ela pegava nas outras pessoas, nos cabelos, no que comia, sempre deixando sua marca de pequeno animal selvagem, morrendo de fome e querendo sempre mais alguma coisa, de preferência a que está no prato ao lado. E ela conseguia. Com ou sem "sim", que ela sempre ousava arrancar dos outros com um "por favor", e uma cara de cínica e coitada que me dava nojo, nos seus monólogos onde ela perguntava, e, gentilmente, tomava a liberdade de responder o que lhe parecia melhor.
E como me dava nojo, no final do dia, ter que falar seu nome pela septuagésima vez, provavelmente por alguma das mil besteiras que ela conseguia fazer, de cinco em menos cinco minutos. Criança estúpida. Carregava os pratos e mais tudo que fosse frágil, como se estivesse dando o seu máximo para que tudo escorregasse e caísse no chão com muita vontade.
Seus cabelos, imensos, loiros, castanhos e claros, pareciam mais novelos de fios misturados, embaraçados, que formavam cinco ou seis pontas, num cabelo que supostamente seria liso. Entre tudo que odiei nela, estão os desenhos, que ela pensava serem os melhores, exceto pelos meninos, que ela dizia não desenhar tão bem. Para mim, os meninos, as meninas, árvores, peixes, EU, ela desenhava o pior imaginável. Terrível. E veja que foram só sete dias. Terríveis.

Posted by Menina Radiguet Drubi | às 7/26/2011 04:59:00 PM | 1 comentários

Sobrancelhas século XIX



Eu não gosto de mãos. Talvez esse não seja o melhor jeito de começar a falar do menino das sobrancelhas risonhas...

Agora uso brincos, tão normais quanto as minhas calças justas, e a minha timidez.
Eu não sou tímida. Essa é quase a primeira vez que não tenho coragem para dizer "bom dia" e continuar parada ao seu lado, tentando ignorar o silêncio-irônico-dos-bobos-que-esperavam-falar-mais, mas você congela em sua mania de coçar o braço direito, como se sua mão esquerda estivesse nervosa demais para ficar quieta, enquanto eu faço um mudo toc-toc com a ponta dos sapatos, olhando pro chão, aguardando a cabeça querer olhar pro teto. Depois de algum tempo, acabaríamos dizendo qualquer coisa, qualquer uma, qualquer duas, você sorriria brevemente para mim com suas sobrancelhas antigas, de calouro de faculdade de medicina, burguês, gentil e educado, eu gosto tanto delas.
Não, na verdade por enquanto gosto delas sorrindo, no momento em que rimos juntos de outra coisa, e eu as procuro a tempo de aproveitar seu riso.
Então é cedo demais para querer sorrir? Com licença, vou correr, correr, o desespero está sempre atrás, e eu? Bem, fico sempre por perto desesperando...
  Às vezes faço de propósito, tentar fazer notar o que eu estou procurando, e quando acho, me desvio rapidamente de você e volto a escrever, como se nada tivesse acontecido. Você não reage. Ah, então por que não me deixa de uma vez? Não é como esperar pela próxima vez em que você vai visitar meus sonhos, mas está umas duas boas quadras perto disso. Minhas aflições quando dou as costas e você é engolido pelo chão, como quem me engana, divertindo-se com a minha testa de criança muito mau-humorada, sorrisos nervosos e radiantes de an-gús-tia, sim, sim, sim. Esquece isso e mais cinquenta e uma palavras que eu falar na sua frente, é certo, vou falar, contadas, cinquenta e uma bobagens.
Nunca vi seus pés, e seus sapatos não me dizem absolutamente nada do que eu penso que você é, e ninguém veio me contar, afinal, quem sabe? Ninguém sabe melhor do que eu que dentro dos seus sapatos moram pés brancos e antigos, tenho certeza, você não é daqui, nem de hoje, vejo no sorriso que fazem as mais curiosas sobrancelhas que já vi, toda manhã que você me intimida com seus olhos castanhos-assustados, seu gosto por exatas e com seu signo, curiosamente invertido, por suas palavras tímidas e raras, de um leão envergonhado.
Nossas conversas nunca duraram muito mais que quinze segundos, mas sei que em comum temos pelo menos medo de se olhar por muito tempo, e medo de dizer tchau e bom dia.
Poderia listar todas as coisas que você acharia de estranho em mim, e nas minhas palavras. Com exceção de acreditar em signos astrológicos e me emocionar com a palavra "humanas", estou sem a menor vontade de imaginar outros absurdos que cabem à esta lista imbecil. Você gostaria de mim, de qualquer jeito? Não precisa responder, eu tenho medo de respostas sérias e racionais vindo entre os seus dentes frios e sagazes.
Quanto tempo estou perdendo aqui? Nenhum, nenhum, estou só fazendo durar o prematuro faz-de-conta, de um menino comum e uma menina normal, com ideias chatas e beijos jovens. Menino e menina agora é o tipo do casal careta-comum, e talvez o melhor jeito de fazer uma coisa diferente seja partir para o clichê. Os comuns também amam nos dias de semana, sábados, domingos e feriados nacionais.
Estou tão comum, que cada dia mais me sinto tão diferente dos ex-comuns. Meu cabelo cresce junto às horas que penso em escrever, esqueço de pensar, e escrevo de você, so-nhan-do. É tudo tão novo, que eu me esqueço que é de verdade, e tenho medo de que de repente seja um delírio, e então começar a te falar de coisas que nunca saíram das estórias que invento pra mim mesma, nas horas vagas, e muitas vezes, nas ocupadas. Parece que eu vou esquecer um sonho, e que tudo vai sair voando a qualquer momento, e lá se vão sobrancelhas se perdendo pelo mundo, deixando os meus olhos sob minhas sobrancelhas tão sem graça, e decepcionadas, tão diferentes das suas, você nunca perderia o que nem mesmo foi seu, como perderia? 
Se fui eu q
u
e
t
i
v
e
?
...

Bem, acho que isso não importa muito, gosto de você o quanto eu preciso para conseguir morrer quando encontro acidentalmente sua expressão perdida, na mesma direção em que eu procuro não perdê-la. Acabou de acontecer. De novo. Obrigada por perceber como estou parecendo uma louca, te perseguindo discretamente.
De todo jeito, eu não gosto dos meus pés, nem das minhas mãos, prefiro quarenta e cinco vezes passar trinta minutos raros contando à Olivette Lettera 82 das sobrancelhas risonhas.

Posted by Menina Radiguet Drubi | às 7/26/2011 04:22:00 PM | 2 comentários