O pote
Ouvi "que dia lindo". "Nenhuma nuvem". "Ensolarado". Todos os dias fazem sol. As nuvens são tão melhores.
Mesmo que o sol pareça mais bonito porque brilha, que eu pareça pareça feliz porque sorrio. Faz calor, existo menos agora.
Todos sérios atravessando a rua, suados, eu vejo as roupas molhadas, colando. O sol de uma hora da tarde faz as pessoas parecerem mal humoradas, franzindo a testa e as sobrancelhas, andando rápido para a sombra de um edifício, fazendo fileira na sombra do poste.
Ignoro minhas angústias me concentrando em imaginar os problemas da mulher que está parada perto de mim, encarando a outra senhora, que está lendo uma revista de supermercado com um pote na mão. Acho que era de doce, mas pelo cheiro de asfalto quente, e pelo clima, qualquer coisa seria amarga agora. Peguei o pote repentinamente e joguei contra o ônibus que passava, pela décima vez não era o meu. Foi um gesto tão súbito e involuntário que só conseguia me esforçar pra entender o vidro estilhaçado no ônibus, escorrendo com a calda vermelha, acho que era geléia. Por um momento achei que fosse mesmo pegar o pote da mão da velha e atirar naquele ônibus com toda força.
Outro reflexo sufocado.
De certa forma é como morrer um pouco a cada dia. Acho que não aguentariam se fosse de uma vez só.
Começou outra vez. Não entendo como seis horas pode ser tarde.
Acho todo o resto um atraso, mas não seis horas, não.
Parece que fui pisoteada enquanto dormia. O sol é quase como o de meio-dia, e também como o de uma da tarde, ou o de quatro e meia.
Forço sentir um pouco mais de entusiasmo, pra ver outro dia exatamente igual. Ouço qualquer música mais espirituosa,
mas parece ironia.
Olho um pouco o Sol, quase escaldante. Nenhuma nuvem. Quase sorrio.
"Que dia lindo para morrer".
