Branco cor-de-água
-Não, acho que é na próxima...
-Aqui. Não foi difícil achar...
-É!...Tchau, obrigada.
Primeiro pé, o segundo, procurando o equilíbrio em cima de um salto quinze azul escuro, mas todos achavam que era preto. O palco estava ali, já estavam todos vestidos e maquiados, e eu estava atrasada para entrar, mas encontrei a minha deixa
-Merda!- diziam em couro arregalando os olhos para mim, e voltavam-se para o seu antigo foco.
-Merda para vocês também (e nunca, nunca, boa sorte!).
Me perguntei se aqueles sorrisos faziam parte da cena, ou se era algum sinal. Um bolo imenso tomava conta do centro, e em volta espalhavam-se mais de duzentos figurantes, e os espelhos em cada parede pareciam aumentar mais ainda as dezenas de pessoas fingindo comer e gostar da comida. Quem escolheu aquelas roupas e aquelas caras? Não gostei, mas não tenho concentração o suficiente para me distrair com trivialidades.
Toc. Toc...Toc. cada passo é bem calculado ou pelo menos deveria ser, nas pequenas quedas quando passam das duas da manhã. Eu não sou a única, todas ali pareciam palhaços em pernas-de-pau. Eu estava vestida no meu velho personagem, alguém comentou sobre a minha mesma boca vermelha e venenosa, os meus mesmos sinais embaixo do olho. Tarde demais, não posso trocar o papel tão em cima da hora, já estávamos em cena, talvez não me reconhecessem com outra pintura.
Cumprimento os conhecidos, nem tantos, desconhecidos... acho que nenhum.
Depois de duas horas estamos todos aglomerados como mortos de sede num deserto, dando a vida e roubando um pouco da morte por um drinque.
Mas não. Coca. Coca. Coquetel. Suco. Coca. Cerveja.
Vodka, vodka, vodka, por que demorou tanto, se haveria de acontecer? Ninguém repara no meu copo, transbordando álcool, branco cor-de-água.
Então, todos se voltam para mim enquanto tenho uma coragem repentina de arriscar alguns passos, cambaleando pelo chão brilhoso. Aquilo estava começando a me consumir. Pronto, já acabei. Agora já sou (a mentira). Finalmente, quantos amigos! Não beijo ninguém, só um ou duas. Chega. Me sinto um rato estúpido e insuficiente. Chega, me deixem encher o copo de vocês com um pouco do meu sofrimento. Eu odeio, odeio vocês.
Tchau, meus queridos, até breve... Aceno, sorrindo, entro no carro: confusão. Inverto, de novo, os papéis, nunca bebi. Nunca fiz na-na-na. Melhor parar de falar. Silêncio.
Chegamos. Tiro o primeiro, o segundo, agradeço por não ter um terceiro sapato, apesar de me parecerem quatro, mas tudo bem, amanhã voltarão a ser apenas dois. Apago tudo.
Palmas? Hoje não, não dessa vez, quem sabe num outro espectáculo... agora ande, me traga um cigarro, só um.

