Língua

  Acordei rindo rindo no meio da noite, então percebi que estava rindo de qualquer coisa que estava dentro de um sonho, esqueci rapidamente, e... voltei ao sono - é o que se deve sempre fazer. Quando o sonho recomeçou, vi uma menina de cabelos, cinza, que tinha nojo de fogo, começava a chorar, ficava extremamente alérgica, se é que isso existe. Ela vivia muito só, e quando chegava o fim de semana, almoçava com as tias, que eram muitas, o que a deixava alérgica também, cheia de brotoejas, e suando frio. Camiseta molhada de tanto enxugar as mãos, que suavam e coçavam. Era o seu grande alívio voltar ao seu quarto nunca limpo, com o topo das estantes empoeiradas, gostava de não ter atenção de ninguém. Era prático: papai fuma e dorme no quarto de cima, ficar embaixo era como morar sozinha no mundo. Eram poucas casas na rua, para sua boa sorte, haviam muitos vizinhos solitários também, que não davam bom dia, porque não saíam de casa. 
     Ela gostava de não encontrar ninguém, e se escondia para que não encontrar de jeito nenhum.
     Passava o dia inteiro, dias em casa, dias no bosque úmido, com seus pés brancos descalços, na terra molhada com folhas secas. Tocava e guardava insetos verdes, marrons, e outros diferentes dos que ela viu ontem. Às vezes ia ao lago, e comia peixes bem pequenos, que faziam cócegas, escorregando na sua língua, foi a única vez que a vi sorrir. Acho que como eu, ela devia pensar porquê eu ria tanto enquanto dormia.

Posted by Menina Radiguet Drubi | às 10/27/2011 09:46:00 PM | 0 comentários

Maria Joana

    Era noite, eu não estava mais com fome, encontrei os copos de plástico, que foram comprados para não haver cacos de vidro quebrado na festa. Os amigos foram se multiplicando, chegavam e quase não comprimentavam, para não atrapalhar o andamento da noite, que ia e vinha, entre bancos, meio-fios, e sapatos fechados, se afogando na lama, e na poeira do asfalto, com as cinzas de tudo que ascendia, e queimava. Pensei como não percebia do que estava rindo, e não eram das coisas engraçadas que estávamos falando sem querer, era de nada, mas brincavam de falar bem de uma Maria Joana, eu achava graça.
    Não dormi, e acordei às cinco, na dúvida de que horas realmente eram, no ônibus vazio, e cheio de pessoas indo trabalhar domingo de manhã. Estava frio, e os postes faziam seu barulho de fios pensando, enquanto cospiam a energia que ligava as televisões dos ex-gordos aluscinados, fumantes, desempregados, que acordavam cedo, domingo de manhã, e isso tudo para simplesmente não fazer nada. Eu nunca tinha observado que os postes faziam este barulho.
     Dormi quase o dia inteiro, com alguns intervalos desesperados, onde já não sabia se era ontem, amanhã de manhã, ou semana que vem, ou se já tinha acordado de verdade. 
     Acordei, fiquei dez minutos de olhos fechados enquanto ia esquecendo meus sonhos, o que me irritava muito. Estavam na ponta da língua há alguns segundos, e já esqueci quase tudo. Parecia que o instante tinha durado dois segundos, e só. E demorei de entender que na verdade estive dormindo dez minutos daquele relógio, e achei estar apenas meditando. Minha testa estava suada, e minhas mãos estavam secas, é estranho o jeito que a gente acorda.

Posted by Menina Radiguet Drubi | às 10/17/2011 11:31:00 PM | 2 comentários

Aveia

Ele dizia que tinha insônia, deixava mensagens às três da manhã, ela não estudava, usava anel de flor, e ficavam felizes assim.
Ele não entendia porquê ela chorava e ria de nervoso no início de cada mês, era sua primeira namorada. Parecia um menino quando via o quanto ela sabia de tudo que existia do lado de fora do livro de física 3, e do que cairia na prova de sábado. E parecia seu pai, com seus 1,78, dizendo a ela que tivesse "juízo, você vai acabar me deixando maluco com essas histórias de experimentar coisas novas".
   Ela ouvia música demais, ele passava os dias implorando para ela cantar um pouquinho mais alto, ele estava gostando. Ele não comia frutas e era metrosseuxual, ela voltou a usar brincos, continuou comendo pão integral e tomando chá. Brigavam pelo desinteresse dele na aula de artes, na vontade dela de fazer coisas erradas.
    Ele era consumista, capitalista, burguês, andava de taxi. Pegou ônibus com ela 7 vezes, só no mês passado. Assistiram filmes, no sofá, no tapete, a casa dela parecia outro planeta, ele preferia almoçar fora, mas tudo bem. Ele viu ela abraçar o amigo e quis brigar, ela chorou e ele pediu desculpas.
   O sobrenome dele era aveia em italiano, então ela preferia não falar para não ficar com fome. Ela escrevia os dias da semana em francês, para não esquecer, ele não lembrava em que dia estavam, e perguntava pra ela, mas ela não falava francês porque tinha vergonha. Segunda, terça e quarta-feira ela ficou de mau-humor, ele deu um beijo na testa, e quinta-feira chegou. Está tudo bem...

Posted by Menina Radiguet Drubi | às 10/06/2011 04:22:00 PM | 1 comentários

Trigo

Pareciam duas crianças, tão cuidadosas e tão sutis, deitadas no algodão tranquilo sem suas camisetas. Ele sorria e lhe fazia tranças no cabelo cor do assoalho loiro escuro, que escorregavam nas suas costas lisas e brancas, e ela se arrepiava sem querer, e sem se importar. Estava frio, quando estavam na sombra, era o suficiente para cada toque macio nas suas orelhas parecerem vento sobre um campo de trigo. Às vezes rolavam na cama, tentavam aproveitar o fino feixe de sol que aquecia suas bochechas, sem fazer calor. Seus olhos tinham cor de madeira e azeite de oliva, mas poderiam dizer que eram quase pretos quando não estavam na luz. 
Ele tinha os dedos dos pés longos, e quando passeavam nas pernas dela eram como pincéis secos numa tela em branco, faziam "shhhhh...". Ela tocava delicadamente o canto da sua boca com dois dedos, leves, quase não se sentia que ela estava realmente o tocando. Encostava o nariz embaixo do olho direito dele, olhando suas pálpebras sem rugas, como uma bolha de sabão. 
Ela tinha colinas no encontro da cintura com as pernas, ele as mapeava, gentil e em silêncio. 
Do lado de fora, três e cinquenta, perto da praia e do asfalto, fazia quarenta graus, e havia sensação de pedras, poeira, chão quente e estrada. Como podia fazer tempo bom na cama? 
Enquanto isso, pensavam em qual seria o próximo gesto, o próximo sopro. Ela pensou em beijar o seu umbigo, ele também, e então, dizer que seria bom dormir, pois era o melhor a fazer numa hora tão vazia. De repente sorriram devagar, misturando os olhos marrons com oliva, e os cílios cederam. 
Quebraram o momento, adormeceram. Saíram dali, para sonhar com um beijo cru.

Posted by Menina Radiguet Drubi | às 10/04/2011 01:02:00 AM | 0 comentários