Camisola
Ela era feminista, no extremo. Mesmo. Naquela época não aceitava nem mesmo amizades masculinas. Nem namoros. Preferia as mulheres mesmo, e também achava que era o mais certo, queria fazer jus à sua filosofia da fogueira de sutiãs. Não era homem, mas seu pai achava isso de vez em quando, nos almoços de domingo. Quem liga? Ela achava que nem homem nem mulher ele era, suficientemente. Chato, bigode tolo, óculos de velho cegueta: tão Honório, nunca mudava uma palavra do seu mesmo velho e batido conselho, desconsiderável.
Ela estava começando um vício, ensaiadamente controlado, para os dias de semana à noite, e qualquer hora do dia no sábado e no domingo, contra a vontade dele. Papai. Honório. Enquanto esperava sua casa chegar ao ônibus em que ela estava sentada, tentando meditar, lia a placa com o número dos Narcóticos Anônimos no painel de cima do motorista, e concluía que ainda não estava nos seus planos, e mudava de pensamento, encarando o próprio reflexo no espelho trêmulo com o movimento daquela máquina gigante, que abrigava bem umas 40 pessoas, bem espremidas, com medo da chuva lá fora. O espelho tremia, deixando o seu reflexo completamente turvo, acompanhando o ritmo das cabeças encostadas nas janelas (cheias de gotas), batendo, quase que freneticamente. Em casa, então, se sentia homem, muito melhor que o seu pai, mal vivido, bem arrependido, de, certamente, tudo aquilo que havia deixado de fazer na melhor idade. Sua Pandora (gostava de chamá-la assim) a esperava em casa, com o gato cinza no colo, duas velas pequenas acesas, vinho, e algumas torradas. Parecia que Pandora gostava de fazer a casa ter vida quando a sua mulher, que se sentia homem, chegava em casa. Por isso, só depois do seu marido tirar os sapatos, ligava o pequeno som, colocava aquelas músicas chatas, para quem nunca ouviu, e começavam a dançar.
Se fosse dar um adjetivo para a dança delas, seria "de movimentos místicos, ou aparentemente anacrônicos", com direito a cabelos balançando, naquele ar frio de fim de tarde chuvosa, e caindo sobre a camisola de manga longa (camurça magenta). As duas dançavam inconscientemente, era incessável. Os peitos balançavam por baixo da camisola enquanto elas dançavam, mas ninguém viu.


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