Carteira



C
hegar na hora errada em algum lugar parece às vezes mudar 
completamente o rumo dos acontecimentos. 
  Liguei para dizer que estava tudo bem, e estava com saudades, na verdade era uma mistura disso com tédio, e sofrimento antecipado pela espera até o show começar. 
  Choveu de repente, e fui obrigada a entrar naquele ninho de grupos e mais grupos de amigos, que me olhavam como se vissem um flamingo azul. Ter uma carteira de cigarros e algum dinheiro para cerveja pareciam a opção mais sociável para aquela noite solitária, quando a chuva passou e consegui um lugar no terraço para matar a demora.
  Via os corpos e olhos conhecidos lá de cima, entrando como se estivessem ansiosos para estar dentro, e só. "Não é possível haver só um corpo solitário dentro dentro de um lugar assim", martelava, fumando sem intervalos. 
  Alguém não muito alto toca o peitoril metálico-fosco da varanda com ar de "boa noite", e quase respondi sem mesmo ele ter dito. Falou alguma besteira dando risada e me pediu um cigarro, mostrando que ficaria mais tempo do que duraria aquele breve canudo viciante. Ficaria para alguns outros, e para se juntar à minha solidão, fazendo companhia. 
  Falava-se desde benzina até a poesia que há em adulterar (carteiras de identidade), os espaços vazios e silenciosos, eram preciosamente dedicados a observar os desenhos que criávamos com a fumaça, colorida pelas lâmpadas esverdeadas.
  Era curioso o jeito que ele não se dava conta que falava com alguém dez anos mais jovem, e se impressionava com a minha vontade de fumar cada Malboro, sem sentir, sem parar, como se fosse chocolate.
  Duas horas passaram tão rápido, que quando começou a música, suspirei e já estava acordando, ainda na dúvida da existência daquele fantasma, jovem demais pra idade dele, da nossa harmonia, nossa dança tranqüila, e seus dedos brincando nos meus ombros, a ponta dos dedos nos meus cabelos castanhos, agitados.
  Lembrei do seu rosto, que ainda não tinha captado exatamente, e do momento em que fiquei confusa, por não ter certeza se aquilo era verdade, ou delírio. Achando graça ele ria dizendo "Eu sou real", e eu retruquei, convicta:



-Eu, surreal.
  
Eu sabia que nem a primeira palavra daquela noite devia ter sido trocada.  Existem coisas que eu queria esquecer, para não lembrar de fazer outra vez.  Alguém em casa dormia pensando em mim, e eu dormia, procurando ter uma síndrome de isolação dos meus próprios pensamentos.
  Perdi noção da sua idade, e ele não tinha a mínima noção da minha, e por isso tudo fluía, como se a vida fosse fácil, como se tudo durasse o tempo que dura uma noite, um show, uma carteira de cigarros, uma carteira de identidade adulterada.

Posted by Menina Radiguet Drubi | às 2/08/2012 01:40:00 PM

8 comentários:

Anônimo disse...

pq vc adora personagens fumantes?

Menina Radiguet Drubi disse...

Não é que adoro, mas é um fato que compõe as cenas...

Menina Radiguet Drubi disse...

flamingo, uma coisa estranha, azul, mas estranha ainda, chamando atenção, uma aberração!

Jade Bittencourt disse...

Quando eu leio as coisas que você escreve penso cá comigo, "como é olhar pelos olhos de um ser humano assim?". E me respondo como quem sempre soube a resposta "é só sair um pouco de si".

Anônimo disse...

Vc encanta qualquer pessoa...

P20.

Menina Radiguet Drubi disse...

É preciso sair de si pra falar si... Não qualquer pessoa, mas talvez, uma pessoa qualquer (:

Anônimo disse...

Sair de mim, eu já saí
saí justo quando te vi
e agora o que me mata
é escrever uma poesia barata
com a justa certeza que não
irei impressionar
essa não é a intenção
pode acreditar
não sou uma pessoa qualquer
e o tal "sair de si", sabe o que é?
só não posso fazer melhor
por ser como você, mulher

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